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nas palavras da artista

Sempre me guiei por assuntos que me interessavam pesquisar, para então decidir qual seria o melhor jeito de transmitir ao mundo as reflexões que partiam desses estudos. Tirando proveito da minha multidisciplinaridade, utilizo as várias linguagens artísticas a serviço daquilo que quero comunicar, não o contrário. Em meu entendimento, a arte é política mesmo quando o artista opta por produções abstratas, meta-linguísticas ou figurativas, cujo foco central da pesquisa está em torno da composição de cores, texturas, linhas e formas. Afinal, toda escolha é uma renúncia, então toda escolha é ideológica, até mesmo a de não abarcar determinados temas.

Tendo toda minha experiência de vida sido atravessada pelo fato de ter nascido mulher, algo que não poderia escapar mesmo se quisesse, desde o início da minha graduação em Artes Visuais estive compromissada com a causa feminista, que influenciou profundamente minha produção artística e pesquisas teóricas, que em sua maioria relacionavam gênero e arte. Desse maneira, escolher uma temática feminista para o Trabalho de Conclusão de Curso foi uma consequência orgânica dessa trajetória. (Para saber mais de produções anteriores ao Rito Fúnebre, acesse a página "bio" do site)

Na época que iniciei a disciplina de projeto de graduação, demonstrava particular interesse no estudo da representação feminina pré institucionalização de patriarcados e em abordagens ecofeministas, muito inspirada por trabalhos de artistas como Ana Mendieta, Mary Beth Edelson e Nancy Spero. Por indicação da professora Sumaya Mattar, comecei a leitura do livro "Mulheres que Correm com os Lobos", da psicóloga jungiana Clarissa Pinkola Estés, que levou à produção de uma escultura inspirada em figuras femininas do neolítico, chamada "La que Cría".

Porém encontrei certa dificuldade ao dialogar com outras mulheres sobre essa produção, já que não diferenciavam feminino de feminilidade e essencializavam o "ser mulher" em certos esteriótipos patriarcais, ou seja, adotavam a perspectiva masculina sobre si mesmas, ainda que não em sua totalidade. O próprio conceito de socialização feminina, que parte da ideia de que a feminilidade seria fruto de uma construção social, lhes parecia difícil de assimilar, pela problemática de diferenciar o que seria natural, inato, do que seria cultural, e o que seria individual, particular, de uma experiência coletiva comum. Se existem padrões de comportamento, não seriam eles fruto da própria natureza feminina? E se a socialização é coercitiva, porque existem tantas exceções às regras?

Por esse motivo, comecei a desenvolver a vontade de investigar como opera essa socialização, desde o nascimento até o final da vida, em contextos históricos e geográficos diferentes, para poder desmistificar determinados preconceitos e desnaturalizar a dominação masculina. Quem sabe assim, seria possível inclusive responder à pergunta de porque tantas mulheres reproduzem machismo e compactuam com a própria opressão. Até porque parece contraditório atuar em oposição ao próprio benefício. No fim das contas, é preciso questionar: "O que mulheres efetivamente ganham compactuando com o patriarcado?"

A Imagem da Mulher

 

Sem dúvida, nesse processo de socialização, narrativas visuais desempenham um papel decisivo, porque corroboram para um processo de alienação ideológica e para provocar a sensação de que é impossível escapar de determinado destino. Mais que isso, através delas são apresentados modelos de identidade a serem internalizados, auto afirmados e adorados. A dominância masculina, portanto, não se impõe apenas por meio do medo e da dor, como também permeada de muito afeto e amor, sendo assim transmitida a futuras gerações, mesmo por mulheres, em forma legado, ou mesmo de forma inconsciente. Ao longo dos séculos a imagem da mulher foi manipulada para a construção de um ou mais ideais de feminilidade, em oposição à masculinidade, em prol de sistemas patriarcais.

Como desenvolvimento dessa reflexão, foram feitas pesquisas de imagens que representavam mulheres, tanto na história da arte quanto na cultura popular, de diversos períodos históricos e regiões, principalmente ocidentais, a partir das quais foi produzido um vídeo, que indicava as relações entre elas e entre algumas poucas representações de homens, com finalidade de comparação. Vale ressaltar que a maioria dos autores dessas imagens eram homens, por uma questão questão de acesso ao ensino, mas também apagamentos históricos, algo que pode ser melhor entendido a partir da leitura do artigo "Porque não houveram grandes artistas mulheres?", de Linda Nolchin, ou por meio da leitura de produções da pesquisadora Ana Paula Cavalcanti Simioni, como "O corpo inacessível", "Eternamente Amadoras", "Profissão artista" ou "Mulheres Modernistas". 

Na totalidade do conjunto, alguns temas se destacaram mais do que outros. Como uma constante, mulheres foram exaltadas tanto na função de matronas, ou seja, na função materna, doméstica, de esposa e do cuidado, sintetizadas principalmente na figura de Maria, quanto na função sexual, como ícones de beleza, lascívia e sensualidade, sendo nesse caso uma grande parcela das retratadas mulheres em situação de prostituição e, mais recentemente, atrizes de cinema e cantoras. Até hoje, essas duas personificações são as que mais se repetem na cultura de imagens e representam dois lados de uma mesma moeda. Em ambos os casos esses papéis sociais são desempenhados em benefício aos homens.

No passado, algumas exceções aconteceram, por exemplo, no caso de mulheres pobres e ou racializadas que foram pintadas em outros contextos de trabalho, como servas domésticas, camponesas em lavouras, vendedoras em feiras ou escravizadas no cultivo do açúcar. Ou mesmo em sátiras preconceituosas racistas ou classistas. Ainda assim, era comum que membras desses mesmos grupos fossem erotizadas em outras imagens, mesmo em situação de escravização, como se estivessem disponíveis sexualmente aos observadores e, principalmente, a seus patrões e 'mestres', como em "A Escrava Romana" de Oscar Pereira da Silva. Em períodos mais recentes, se vê a representação de mulheres no mercado de trabalho remunerado de forma mais ampla, porém ainda permeada de concepções que incentivam o assédio moral e sexual. Nos anos 60, mulheres estadunidenses aparecem em propagandas como secretárias que excitam seus chefes sexualmente, ou como aeromoças bonitas que iriam entreter os passageiros de vôos com muito mais do que a própria aparência.

Mulheres indígenas também não escaparam à sexualização. Com frequência foram representadas como tentações exóticas, como nos trabalhos de Gauguin, como selvagens indomáveis, em gravuras européias sobre canibalismo, mas também foram muitas vezes representadas mortas, como em 'Moema' de Victor Meirelles. De certa forma, essas imagens vão de encontro com representações de bruxas européias, na transição do feudalismo para o capitalismo, também tidas como perigosas sedutoras, adoradoras do demônio que, segundo as narrativas, igualmente apreciavam a nudez e operavam rituais - como demonstrado pelo livro da cientista social, Silvia Federici, "O Calibã e a Bruxa". As insubmissas e subversivas, consideradas malignas, também foram tema de muitas pinturas, principalmente na figura de Eva, a 'pecadora original'. A principal mensagem é que deveriam ser controladas ou exterminadas, caso a primeira alternativa não fosse possível.

De forma contundente, analisando a progressão das imagens, também é possível notar as inúmeras transformações nos padrões de beleza, não só expressos na aparência como também nas vestes, cortes de cabelo, penteados e maquiagens. O que não se transformou, porém, foi a concepção da beleza como um ideal a ser perseguido, como característica imprescindível da 'boa' fêmea, que primariamente a torna admirável, fosse madona ou prostituta. Não que a beleza não fosse, de nenhuma forma, considerada parâmetro para medir a bondade ou o caráter masculino, porém, na maioria dos sistemas patriarcais, foi imposta de forma mais extrema às mulheres, para as quais os critérios sempre foram mais rigorosos. Mulheres ao longo da história utilizaram muito mais artifícios de beleza do que homens, que não raro prejudicavam sua mobilidade, como os sapatinhos de lótus, os espartilhos, os vestidos de várias camadas ou os sapatos de salto. A partir das imagens, é possível notar como as próprias diferenciações das roupas femininas e masculinas serviram e ainda servem para indicar a diferença de status entre os dois grupos.

Mais recentemente, conforme foram diminuindo os volumes de roupa requeridos, as diferenciações precisaram ser exaltadas de outras maneiras, como por exemplo no uso de roupas justas, curtas e acinturadas que demarcam a silhueta feminina, ressaltam seus atributos sexuais e deixam as mulheres em constante alerta de um possível 'escape', ao passo que homens heterossexuais se viram livres para utilizar roupas cada vez mais largas e confortáveis. Mais do que isso, a diferenciação precisou se tornar ainda mais pronunciada no próprio corpo feminino, agora sujeito a ideais de beleza ainda mais extremos, que não raro necessitam de alterações cirúrgicas, injeções, silicones e regimes severos para se concretizarem. Atualmente a demanda patriarcal é que mulheres se maquiem compulsoriamente, eliminem todos pelos de seus corpos, lutem contra o próprio envelhecimento e gastem todas suas economias em roupas, acessórios e todos os tipos de produtos de beleza.

Através das imagens, também é possível notar como após a industrialização, também se industrializou a pornografia, que passou a se inserir de forma cada vez mais cotidiana e naturalizada na cultura popular. A erotização da dinâmica de dominação e submissão ficou ainda mais explícita na representação feminina, com a adultização e sexualização de meninas e a infantilização de mulheres adultas. A sensualidade, inclusive, se apresenta com frequência combinada de elementos infantis, como no videoclipe de Britney Spears "Baby one more time", onde a cantora dança sensualmente em uniforme de colegial, no videoclipe de Pedro Sampaio com Luiza Sonza, "Atenção", que conta com cenários e figurinos que fazem referência ao clássico infantil "A Fantástica Fábrica de Chocolate", ou mesmo no videoclipe de ZAAC "Mais uma", com participação de Anitta, na qual a cantora chupa um sorvete fálico enquanto cavalga em um unicórnio mecanizado de brinquedo.

Enquanto a concepção de beleza masculina predominante se expressa em signos que ressaltam sua força, liberdade, poder, seja a postura destemida ou o olhar de determinação, independente de sua idade; a concepção de beleza feminina predominante se expressa em signos que vão no sentido oposto, que ressaltam a fragilidade, a docilidade, a subserviência, a inocência, a completa doação e anulação de si e a jovialidade. Mesmo quando considerada 'poderosa', ou 'empoderada', o poder da 'femme fatale' reside justamente na capacidade de seduzir e excitar homens, o que não deixa de ser uma forma de subordinação, já que em última instância cativar homens é o que garante que uma mulher seja vista, valorizada e reconhecida, e com isso tenha alguma chance de acessar pelo menos parte do poder masculino. Em sociedades patriarcais é através da aprovação 'deles' que 'elas' conseguem recursos, patrocínios, publicidade, cargos e tronos, aprovação que pode ser revogada a qualquer momento. Ou seja, enquanto a beleza da mulher, independente da sexualidade, é um recurso de sobrevivência e constitui-se como signo de submissão, a beleza do homem heterossexual é um mero facilitador do acesso masculino às mulheres e constitui-se como signo de poder.

Como bem colocou a psicóloga Dee L. Graham em seu livro "Amar Para Sobreviver", sobre as modificações estéticas a que mulheres se sujeitam: "Será que os homens se sentem atraídos por mulheres que fazem essas coisas porque tais ações comunicam até onde estamos dispostas a ir para conquistar a aprovação e o amor deles? Os homens sentem atração por mulheres que fazem essas coisas porque tais ações comunicam a eles que nós não temos grande estima por nossos corpos (femininos)?"

De fato, para além da apreciação masculina há uma apreciação narcísica na obsessão de mulheres pela própria imagem, que faz com que muitas se sintam regozijadas ao serem observadas e validadas por homens. O erótico está em ser objeto de desejo para o outro, não no prazer por si própria. Mas isso também faz parte da construção social patriarcal, afinal as fêmeas foram historicamente retratadas como sujeitos a serem observados, não sujeitos que observam. Não à toa, cerca de 85% dos nus femininos em museus de arte moderna representavam mulheres, como denunciou o coletivo de artistas Guerrilla Girls em 1989.

A objetificação sexual exercida por homens atinge mulheres de todas as idades, raças e classes econômicas. Mulheres em espaços públicos eram e ainda são tidas como propriedades públicas, ao passo que mulheres em espaços privados eram e ainda são tidas como propriedades privadas. A regra patriarcal é: esposa ou prostituta (em alguns casos funcionária), todas devem servir aos homens sexualmente como troca de sua sobrevivência econômica. Ou então, se não exercer a função de principal objeto sexual, a mulher casada deve ao menos servi-lo limpando sua sujeira, preparando sua comida, seu prato, gestando e criando seus filhos, e cuidando da sua saúde física e emocional. Até porque se a violência sexual é a forma pela qual o patriarcado consolida a afirmação do pênis sobre a vagina, a reprodução e a acumulação de recursos decorrente dela são os principais motivos pelo qual existe esse controle em primeiro lugar.

Olhando para a questão comportamental, o conjunto de imagens acumuladas representa uma verdadeira enciclopédia de gestualidades a serem copiadas por mulheres no convívio social e, principalmente, nos jogos de sedução. Porém, embora importante, apenas a visualidade não é o suficiente para compreender todas as camadas da socialização, que envolvem influências no temperamento, personalidade, conduta, moralidade, atitudes, escolhas, etc. A cultura machista é muito mais ampla, se expressa na cultura oral, escrita, sonora, audiovisual, teatral, nos costumes e muito mais. Não obstante, a mais importante descoberta dessa investigação foi o uso da repetição como recurso discursivo de afirmação da ideologia patriarcal, ao passo que o apagamento de imagens dissidentes também foi necessário para garantir a soberania da perspectiva masculina no universo simbólico.

Contemplando o trabalho de outras mulheres artistas, nasceu a reflexão de que embora existam inúmeras obras de teor feminista em museus e mercados de arte, sobretudo considerando a efervescência dos anos 60 e 70, estas ainda não foram difundidas o suficiente, pelo menos no Brasil. Com isso, os debates que suscitam ainda não se popularizaram como poderiam. Ainda hoje na educação básica prevalece uma visão eurocentrada, branca e masculina da história da arte. Mas o recurso da repetição não serve apenas ao dominante como também pode e deve ser utilizado contra a hegemonia, de modo a subvertê-la.

Na minha opinião, se faz necessário multiplicar a quantidade de criações artísticas feministas, antiracistas e anticapitalistas, que tanto sinalizem e denunciem como opera o uso das linguagens artísticas em favor dos sistemas vigentes, quanto ressignifiquem a realidade, sinalizando e batalhando por outras alternativas de mundo. Ou seja, não basta apenas denunciar, ou apenas ressignificar, ambas as práticas são necessárias para uma verdadeira transformação. Ao mesmo tempo que, para dar espaço ao novo, o velho precisa ser jogado fora, os vazios provocados pelas denúncias precisam ser preenchidos, substituindo adequadamente o que já não serve mais. Pois se não há verdadeira proposta de futuro, predomina o medo de abandonar o tradicional, que já é conhecido. Portanto, crítica e ressignificação são processos complementares.

No caso de 'Rito Fúnebre', a obra se adequa mais ao estilo de produção de denúncia, enquanto outras produções se propõe à função de ressignificação, como a já citada 'La que cría'. Uma grande inspiração para o 'rito' foi o trabalho "My Birth" da artista Carmen Winant, que descobri ao fazer a pesquisa sobre a Imagem da Mulher. Trata-se de uma acumulação de mais de duas mil imagens de partos e preparações para partos dispostas sobre uma parede do MoMa. No caso deste trabalho, não há intenção de denúncia, pelo contrário é uma exaltação, mas o uso da repetição fez refletir como colocar as imagens lado a lado provocou uma compreensão mais ampla da magnitude do evento. Com isso, fiquei com vontade de reproduzir de alguma forma o mesmo procedimento.

A pesquisa de imagens de representações femininas causou grande impacto em colegas conhecedores da teoria feminista e da história das mulheres - em outras pessoas nem tanto. Parte do público que assistiu sequer reconheceu a produção audiovisual decorrente da pesquisa como arte. Em alguns casos, temas passaram despercebidos, como a problematização da maternidade como também lugar de exploração, enquanto que o tema que se sobressaiu foi a objetificação sexual, talvez o mais conhecido. A mera inclusão de imagens de mulheres fora de um contexto de sexualização causou incômodo por justamente destoarem do conjunto predominante, como se não fizessem parte também dessa mesma estrutura. Por esses motivos, concluí que precisava ir mais a fundo na pesquisa e apresentação formal do trabalho, aprofundando e esmiuçando temas separadamente.

Sobre a questão da beleza, já tinha lido trechos do livro "O Mito da Beleza" de Naomi Wolf e sentia vontade de ler também "História da Beleza" de Umberto Eco, porém deixei para me debruçar sobre esse tema em outro momento. Também já tinha começado a leitura de "O Calibã e a Bruxa", que só fui terminar depois, porque estava mais interessada em compreender as origens históricas da dominação masculina, muito anterior à caça às bruxas. Por isso priorizei o livro "A Criação do Patriarcado", de Gerda Lerner, que fez com que toda minha pesquisa sobre representações femininas fizesse muito mais sentido, esclarecendo dúvidas e dando corpo a reflexões que ainda eram incipientes. Nesse sentido, a obra foi um divisor de águas.

A Criação do Patriarcado e a questão do casamento

 

A autora do livro tece a sua própria teoria, com base em evidências, de como iniciou a dominação masculina, antes mesmo da institucionalização dos patriarcados nos estados arcaicos. Resumindo bastante a sua tese, provavelmente, os grupos caçadores-coletores tinham mais chances de sobrevivência se as mulheres e crianças do grupo fossem poupadas e protegidas, pois quanto menor um grupo, menos força de trabalho ele tem e mais suscetível ele fica a ser exterminado, seja por fome, evento climático, ataque animal ou por conflitos com outros grupos. 

Com isso, as mulheres se afastaram das atividades militares e de caça de animais de grande porte e se focaram em outras atividades, principalmente o trabalho reprodutivo. Mas, sendo consideradas valiosas, acabaram se tornando vítimas de trocas diplomáticas com outros grupos e de sequestros. Assim teria começado a reificação que teria se agravado com a mudança de estilo de vida para a agricultura, que teria possibilitado ainda mais tempo livre aos homens, enquanto elas continuaram sobrecarregadas por suas tarefas, que se acumularam. Gerda teoriza que nesse momento, além de os homens terem conquistado muito prestígio através das suas conquistas militares, o modelo da agricultura necessitava de bastante mão de obra, portanto de bastante trabalho reprodutivo.

Ou seja, a divisão sexual do trabalho que começou como uma estratégia de sobrevivência foi manipulada e aproveitada para possibilitar uma desigual acumulação de recursos pela classe sexual masculina.

Mais adiante ela vai discorrer sobre toda a estruturação dos estados mesopotâmicos, analisando leis, imagens, registros de achados arqueológicos, cartas, selos, mitos e poesias. Acima de tudo, lendo sua análise fiquei impressionada com o quanto nossos valores, como sociedade ocidental, ainda são semelhantes aos valores daquele tempo. As legislações citadas expressam uma ideologia ainda presente. Por exemplo, na época era concedido o direito de matar a esposa em caso de adultério, ou de matar caso ela decidisse se separar, se assim o homem desejasse. A partir dessa leitura, meu coração se tranquilizou, porque pude entender os processos históricos que nos trouxeram até aqui e confirmar que a dominação masculina não é natural. Muitos fatores influenciaram a sua consolidação global, desde questões geográficas, sociais e culturais, a guerras e problemas climáticos.

Com este livro, compreendi que a capacidade reprodutiva das mulheres é de máxima importância para sistemas patriarcais como um todo, por isso ainda hoje existem tantas restrições e ataques aos direitos reprodutivos das mulheres. Afinal, sem a reprodução, não haveriam trabalhadores e trabalhadoras a serem explorados por sistema hierárquico algum. Portanto, o controle reprodutivo é a base para a acumulação de recursos em qualquer regime desigual.

Descobri que as primeiras pessoas escravizadas ao redor do globo foram mulheres, fato que só pode ter sido ocultado durante minha escolarização. Ao invés de matar as populações como um todo, os homens aprenderam a poupar as mulheres para levá-las como espólio de guerra a suas terras natais. Além de trabalhar nos plantios, na produção têxtil, ou como serviçais domésticas, as primeiras escravizadas também eram exploradas sexualmente.

 

Não à toa, até hoje mulheres são maioria na pobreza, visto que ainda realizam uma porção exorbitante de trabalho não remunerado. Segundo a ONU Mulheres, "O valor do trabalho de cozinhar, limpar, cuidar de crianças e dar atenção a pessoas idosas – tarefas que a economia depende – representa entre 10 e 39% do PIB. Pode pesar mais na economia de um país do que pesam a indústria manufatureira ou a do comércio." E, segundo relatório da Oxfam, meninas e mulheres dedicam cerca de 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado, o que equivale a uma contribuição de pelo menos 10,8 trilhões de dólares ao ano à economia global. Esse valor é mais do que três vezes o valor da indústria de tecnologia mundial.

Aprendi que as hierarquias de classe e raça entre mulheres, foram criadas e fomentadas de forma proposital para desmobilizar-nos enquanto grupo. Privilégios de classe foram concedidos a mulheres dependentes e obedientes de classes mais altas. E o próprio fato de vivermos cercadas de nossos opressores, dividindo teto com eles, também prejudicou e ainda prejudica nossa organização, posto que inevitavelmente desenvolvemos laços afetivos com eles. Em comum, todas as mulheres foram e ainda são colonizadas sexualmente.

Mas também aprendi que, assim como na atualidade, o acesso de mulheres ao poder dependia da concessão masculina, geralmente via herança ou casamento, que podia ser revogada a qualquer momento, a depender de como se comportassem. Sobre a antiga sociedade mesopotâmia a autora escreve: "Para as mulheres, a classe é medida pelos seus vínculos sexuais com um homem, que então lhes proporciona acesso a recursos materiais". Curiosamente, a palavra patrimônio se refere a bens materiais enquanto a palavra matrimônio se refere a laços conjugais, ou seja, no patriarcado o casamento seria o maior capital de uma mulher.

Por fim, pude ver por meio de exemplos todo o processo de transformação do simbólico na cultura visual, sobretudo a destituição das deusas, com a institucionalização do patriarcado mesopotâmico. Esse processo gradual constituiu a última etapa na consagração da dominação masculina. Em algum momento ainda irei produzir artisticamente sobre esse tema, porém acabou não se tornando meu foco no TCC em bacharel. No meu trabalho de conclusão de curso para licenciatura aprofundo mais essa temática, ao sugerir obras de arte relacionadas a serem trabalhadas em sala de aula.

Ao mesmo tempo que lia "A Criação do Patriarcado", iniciei, por indicação da minha orientadora Dália, uma auto análise sobre como se deu a minha própria socialização para a feminilidade, examinando de forma mais íntima como se construiu a minha própria individualidade nesse contexto. Revisitando memórias de infância, recobrei um objeto simbólico muito importante em minha trajetória pessoal - a boneca.

A Boneca

Infância e socialização para a feminilidade - a boneca para maternar e casar

 

Na minha concepção, os cuidadores primários escolhem as primeiras influências na infância de um indivíduo. São eles que compram os primeiros objetos e roupas pessoais, apresentam os primeiros livros, as primeiras obras de arte, os primeiros filmes, os primeiros modelos de como ser, fazer e agir às crianças, que absorvem o contexto em que estão inseridas e reparam em como adultos reagem a seus comportamentos. Como filha mais nova, herdei roupas e brinquedos da minha irmã mais velha, a qual eu observava como modelo e que, desde cedo, gostava e agia como uma 'princesa'.

A princípio, brincava com o que estivesse disponível, fossem pelúcias, carrinhos ou bonecas. Aliás, eu adorava e sempre adorei carrinhos. Apesar de ter ganhado poucos, tenho algumas fotos ainda bebê brincando com alguns, que eram de outras pessoas. Mas com o tempo, conforme eu fui ganhando de presente objetos pessoais, meus gostos foram se condicionando e meu foco mudou. Que me venha à memória, só me lembro de ter ganhado carros que eram acessórios de bonecas, como a Barbie ou a Polly.

Um dos primeiros brinquedos que ganhei em primeira mão foi Bruna, uma boneca de plástico de um palmo de comprimento. Minha irmã também ganhou uma igual, com a diferença de que a pintura do cabelo era castanha. Não sei se por copiar minha irmã ou por interesse genuíno, eu carregava Bruna para todos os cantos. Tanto, que os familiares costumavam me perguntar como estava e quais eram as novidades da 'filhinha'. Sem dúvida foi meu brinquedo favorito por anos, sendo que quando ganhei devia ter apenas dois ou três anos de idade. No começo, o cuidado para com o objeto não era natural, aliás era costume morder as pontas dos dedos da boneca, que achava deliciosas. Mas com o tempo esse cuidado foi se desenvolvendo, não apenas por ter sido educada para isso, mas conforme fui me projetando, cada vez mais, no pequeno objeto. O que queria para mim, fazia pela minha filha imaginária. 

Eu era muito carente porque meus pais trabalhavam muito e quem cuidava de mim era minha avó. Eu amava e amo minha avó de paixão, mas confesso que sentia falta principalmente da minha mãe. Parece que ela voltou a trabalhar presencialmente assim que eu completei três meses de vida. Durante o dia vinha pra casa apenas para amamentar, depois voltava para o trabalho. Essa distância deve ter sido bastante traumática para mim, que era descrita como um bebê bravo. Tenho memórias de ter pesadelos à noite e tentar entrar no quarto dos meus pais, que se mantinha trancado. Por isso eu sempre recorria à minha avó para me acalmar. Era ela quem me levava para escola, me dava banho, almoço, cuidava de mim quando estava doente, entre outras coisas.

 

De maneira geral, sempre fui descrita como brava. Aliás, minha desconformidade com a feminilidade sempre foi muito mais forte em sentido comportamental que o estético. Mas ao mesmo tempo que era questionadora, destemida, sincera e assertiva, por falta de consciência acabei reproduzindo muito machismo e caindo em armadilhas. Outra forma que eu tinha de projetar a minha carência era me dedicar ao sonho de ser amada romanticamente. Passava horas divagando sobre namoro, desejando ter um, elegendo um garoto para gostar e de certa forma perseguir, por conta de meus desejos. Teve um colega de classe que eu até tirei uma foto com a minha câmera da Barbie para colocar debaixo do meu travesseiro.

Voltando às bonecas, depois de Bruna, veio Lívia, e depois de Lívia, Maria. Todas filhas, todas bebês, cuidadas de forma excepcional. Tinha carrinho e até moisés para levá-las comigo. Meu sonho de infância era ser mãe, por isso eu ficava pensando em tudo que eu faria diferente ou igual aos meus pais em relação aos meus próprios filhos.

As Barbies nunca foram favoritas, apesar de ter inventado uma porção de dramáticas histórias de amor por meio delas. As Pollys eram mais procuradas pelo tamanho e pelo prazer de construir mini cidades para habitarem. Por outro lado, era chato trocar suas roupinhas de plástico, que rasgavam com facilidade, além de que seus pequenos sapatinhos se perdiam em um piscar de olhos. As Bratz eram bonitas, porém a única diferença em relação às Barbies era que eram mais maquiadas e pareciam mais decorativas, pois tinham ainda menos mobilidade. Todas essas bonecas adultas, quando apareciam nas propagandas, saíam às compras, porém na prática fazer de conta que compravam era simplesmente entediante. Então essas brincadeiras duravam pouco tempo. Era mais interessante criar histórias cabulosas com elas, dignas de telenovelas.

Das bonecas mais diferentes que tive uma foi uma reprodução da personagem Emília, de Monteiro Lobato, toda colorida e de pano. Na época era comum que as meninas assistissem ao Sítio do Pica Pau Amarelo, pela TV Globo, e se inspirassem na linguaruda protagonista, que sonhava em casar e se tornar uma condessa. Mas essa boneca era menos realista, então por algum motivo despertava menos interesse. Uma outra boneca, mais esquisita, da linha da apresentadora Eliana, servia para fazer penteados e maquiagens. Tratava-se de uma cabeça loura cabeluda encaixada em um par de ombros. Era divertida, apesar de que às vezes era mais prático e audacioso produzir a mim mesma do que produzir a cabeça. Das brincadeiras mais entusiasmantes que havia, afinal era ser a própria boneca - a própria personagem. Ao invés de manusear uma terceira, como uma marionete, interpretar em primeira pessoa fazia ser possível mover o próprio corpo, pular, correr, girar e gritar, ainda que em alguns dias me encontrasse com a mobilidade um tanto reduzida, usando vestido, mini salto e maquiagem.

Em casa também tínhamos matrioskas, bonecas russas, que minha mãe comprou por saber que éramos descendentes de russos. Seu pai, meu avô, que faleceu quando ela tinha onze anos, era filho de russos que migraram ao Brasil antes dele nascer. Eu adorava brincar com elas, de montar e desmontar, embora não tivesse muito mais a ser feito além de admirar. Essas bonecas ficavam em uma prateleira alta da sala, portanto tinha que me pendurar nas estantes para alcançá-las, até que tivesse tamanho para pegá-las tranquilamente.

Adolescência e socialização feminina - a boneca sexual

De certo modo, não tinha sido criada apenas para cuidar das bonecas, mas também para ser como uma, um bibelô dos meus pais, algo nada excepcional na criação de meninas. Mas de repente, tudo mudou. A adolescência foi chegando e com ela fui perdendo ainda mais minha liberdade, pois deveria me comportar como uma "moçinha". Se antes o comportamento atrevido poderia ser considerado engraçadinho, passou a ser considerado ainda mais inadequado. Era preciso ser educada, fechar as pernas, não usar roupas muito curtas e cuidar da aparência. Levei broncas do meu pai por tamanho de saia, fui censurada pela minha irmã que me chamava de puta pelas roupas que escolhia, era chamada de rebelde, e ouvia inúmeros comentários sobre a minha aparência vindos de toda a família, principalmente relacionados aos cuidados do meu cabelo, ao cuidado para não engordar e aos meus pelos.

Na escola havia certa hostilidade para com meninas que ainda gostassem de brincar. As populares eram aquelas que conversavam sobre meninos, namoravam, usavam maquiagem, roupas sensuais e tinham os corpos mais desenvolvidos. Além disso, acreditava-se que corpos fortes eram mais masculinos, então esportes eram menos praticados por meninas do que por meninos. Com essa mistura de fatores, fui percebendo que as garotas foram se tornando cada vez menos ativas.

Tendo assistido inúmeros filmes de romance, todos os filmes de princesa da Disney, lido diversas revistas adolescentes, e sendo influenciada pela cultura como um todo, que indicava que a máxima felicidade das mulheres estava em relacionamentos, passei a buscar jeitos de agradar os meninos, que naquela época já estavam todos consumindo pornografia online. De boneca de porcelana, a demanda passou a ser me tornar uma boneca sexual - com o cuidado para não acabar sendo chamada de 'puta'. E ao mesmo tempo que sexualidade era um tabu dentro de casa, no ambiente escolar era pauta cotidiana. Por muito tempo fui chamada de 'santinha' pejorativamente por colegas, por não querer apressar as coisas. Eu queria namorar, não ficar com qualquer menino em um jogo de verdade ou consequência. Queria beijar e ficar de mãos dadas, não falar de sexo ou começar a fazer.

Depois de mudar de escola, o jogo mudou porque eu comecei a aceitar mais me mudar para conseguir algum tipo de romance, de contato físico sequer. Mas eu não estava dentro do padrão de beleza daquele ambiente. Eu era magrinha, despeitada, desbundada, peludinha e não alisava o cabelo. Além de tudo eu era muito desprezada e maltratada por ser diferente, por participar das aulas, vestir roupas coloridas fora de moda, ser muito sincera e literal.

 

Teve uma época que eu estava tão triste, que eu passava horas do meu dia me arrumando, fazendo as unhas, passando maquiagem e arrumando os cabelos. Então eu tirava fotos e quando terminava me vinha um vazio que só poderia ser preenchido com 'likes' que raramente chegavam. Fiz parte de uma das primeiras gerações com acesso a smartphones. Inclusive fiz conta em um site chamado "Formspring", de mensagens anônimas, pelo qual costumava receber muitas mensagens de bullying com teor sexual, como "cospe ou engole?". Eu nem sabia o que significava isso então acabei respondendo "???" e isso foi motivo de ainda mais bullying. Além disso, os meninos que voltavam para casa no mesmo transporte que eu se sentiam à vontade para comentar e opinar abertamente sobre a minha aparência e a de outras meninas que voltavam conosco.

Mais tarde, depois de ser muito rejeitada, acabei me envolvendo secretamente com meninos mais velhos, que me mostravam os conteúdos online que consumiam. Entendi que eu precisava ser um personagem para eles, eu tinha que 'performar'. Eu buscava amor enquanto eles buscavam sexo, ou o mérito de perder a virgindade. Mudei de escola novamente e, por acaso, conheci o feminismo, quando estava a caminho para a casa de uma amiga. Estava acontecendo uma manifestação na Avenida Paulista da 'Marcha das Vadias". Acabei fazendo amizade com algumas meninas que conheci lá e passamos a trocar figurinhas sobre nossas experiências e leituras.

 

Nessa época tive uma professora de português que mostrou um vídeo sobre mulheres que politicamente não se depilavam e resolvi aderir à prática. Desde muito nova eu arrancava meus pelos porque garotos me chamavam de macaca e gorila por ser peluda, mas eu nunca gostei da tortura que é ter os pelos arrancados por cera, ou de precisar ficar passando gilete pelo corpo. Mesmo os cremes depilatórios são incômodos e caros. Afinal sou descendente de portugueses então sou mesmo peluda. Apesar de alguns colegas tirarem sarro de mim na escola, e de meu pai e irmã mais velha me infernizarem quanto a isso, me mantive firme na minha escolha e me mantenho até hoje. Mulheres adultas têm pelos. Todavia não posso negar que ao não me depilar tenho o infortúnio de ter que lidar com reações muito negativas de outras pessoas em relação a isso. Entre sofrer de diferentes formas, optei pelo sofrimento social.

No meu último ano escolar, acabei me envolvendo com um menino mais novo que eu, na esperança que o resultado fosse diferente de quando me relacionei com os garotos mais velhos, mas ele acabou se revelando igualmente abusivo. Com o passar do tempo fui perdendo o meu vigor, minha autoestima foi diminuindo e fui convencida de que ninguém além dele jamais iria me querer. Nessa relação, além de ser traída inúmeras vezes e de sofrer violência psicológica, sofri violência sexual. Deprimida, eu literalmente pensava como seria bom ser simplesmente uma boneca, que não sente frio, nem calor, nem tem motivo para sentir qualquer coisa. Assim eu teria uma existência na qual eu cumprisse minha 'função' como mulher, a de ser usada, mas não sofreria dos efeitos emocionais e físicos decorrentes dela.

A questão é que mulheres efetivamente não são bonecas, apesar de ser demandado que hajam como se fossem. É muito triste para mim lembrar desses desejos, que revelam tanto sobre as violências que sofri.

Universidade - a boneca como figura humana

Ao entrar na universidade, me interessei pelo tema da negligência histórica ao prazer feminino, o fato do clítoris ter sido ignorado pela ciência por tanto tempo, de que mulheres lésbicas tinham seus clítoris extirpados na Grécia Antiga, e de que ainda hoje existem mulheres africanas que passam por esse procedimento. A partir desse estudo, para uma disciplina do bacharel em escultura, realizei esculturas comestíveis, em massa de pirulito, que retratavam mulheres se masturbando. O nome do trabalho era "Me Chupa" e foi apresentado sobre uma mesinha, com uma caixa de isopor e uma plaquinha com o título. 

Depois de postar fotos dos trabalhos nas minhas redes sociais, fui surpreendida pela reação do meu pai, que foi até onde eu morava para dizer que aquilo era pornografia, que não era arte, que tinha vergonha de mim, que iria escrever aos parentes pedindo desculpas e dizendo que tinha vergonha de mim, e que iria cortar minha pensão alimentícia. Eu nem sabia que ele de fato usava redes sociais. Sem dúvida, meu pai estava preocupado com a própria imagem, com a ameaça de que uma de suas filhas não ocuparia seu devido papel de esposa. Ele nunca quis que eu cursasse Artes e me desincentivou a seguir esse plano. Afinal, as bonecas não podem sentir ou querer, devem se comportar. Mas eu me mantive firme, dizendo que era melhor ele aceitar, porque aquela era eu e aquele era meu trabalho.

Por outro lado, tiveram outras camadas desse episódio que me fizeram refletir. Um colega de curso, que mais tarde se tornou um grande amigo, veio me contar admirado que tinha subestimado o trabalho antes de sua apresentação final. Ele teria visto as esculturas em processo no ateliê de cerâmica e teria comentado com o professor da disciplina sobre como era ruim a qualidade dos trabalhos ali dispostos. Teria dito indignado: "Olha isso aqui!! Tem gente fazendo bonequinhas!!". Mas quando compreendeu que as tais bonequinhas tinham um teor sexual, sua opinião mudou. Eu me senti incomodada com essa história por muito tempo até entender de onde vinha o incômodo. 

Não seria toda boneca uma figura humana e toda escultura de figura humana uma espécie de boneca? Porque para a figura humana de uma mulher ser aceita ela precisa ser sexualizada, ou então o trabalho é considerado infantil, pouco ousado ou desinteressante?

Meu amigo me explicou que para ele a genialidade do trabalho estava justamente no fato de subverter expectativas, de ser provocador, simples, popular e profundo, comparando até a Shakespeare, mas também estava na relevância, uma vez que ele efetivamente já tinha conhecido ao longo de sua vida inúmeros homens que não sabiam satisfazer as próprias parceiras. Era afinal um homem interessado nas pautas feministas e em trabalhos conceituais. Porém, seu prévio desprezo por coisas que são tidas como tipicamente como exclusivas ao universo feminino não passou despercebido por mim.

Com o tempo entendi que a vivência de uma mulher artista só é considerada intrigante caso se assemelhe à vivência artística masculina, adotando comportamentos, gostos, práticas, atitudes e interesses tipicamente tidos como masculinos, como por exemplo o interesse pela temática do sexo. Até porque falar sobre sexo abertamente desperta o gatilho do desejo masculino e costuma ser pré-requisito para ser considerada uma 'femme fatale', ou seja, uma mulher interessante aos olhos públicos. Mesmo meu trabalho mostrando uma sexualidade feminina à serviço da própria mulher, por se tratar de uma temática sexual, acabei conquistando a atenção e a aprovação masculina.

A contradição é que, para meu pai, eu era um objeto privado, então não poderia falar de prazer abertamente, enquanto que no meio artístico, sou tida como um objeto público, portanto é esperado que ao menos eu seja capaz de falar sobre prazer abertamente, ou então seria considerada púdica, sem graça e conservadora. Talvez se fossem apenas 'bonequinhas' meu pai não teria se incomodado com meu trabalho. De certa forma, creio que nos é esperado ocupar um lugar de uma espécie de musa como artista. Na história da arte muitas artistas foram lembradas apenas por serem parceiras de outros artistas, não pelos seus próprios trabalhos.

Refletindo sobre o episódio, pensei que esse desprezo pelas bonecas demonstra, assim como o desprezo pelo feminino, também certo desprezo pela infância. As crianças, como as mulheres, sempre foram tidas como inferiores, incompletas e fracas. É como se elas também não tivessem nada a nos acrescentar ou ensinar enquanto adultos, quanto mais uma criança menina. Mas o desprezo pelas bonecas também pode ser lido como um desprezo ao próprio trabalho do cuidado, quase exclusivamente exercido por mulheres. Ou seria um desprezo à boneca como objeto meramente decorativo? Se representa um ódio ao patriarcado, esse ódio estava deslocado para a arte ou artista que meramente o estava reproduzindo, mais que isso, que é vítima dele.

Outros colegas de curso me perguntaram se eu não achava que meu trabalho "Me Chupa" era objetificante, por se tratar de objetos comestíveis em forma de mulher. Mas se fosse assim, as mulheres jamais poderiam ser representadas em qualquer tipo de escultura, porque seria transformá-las também em objetos. Deveríamos pôr um fim à representação feminina? Essa crítica peca pela literalidade, porque o simbólico do trabalho vai em outro sentido. A questão é que existem formas de representar mulheres que não sejam contaminadas pelo machismo, embora se saiba que a depender do observador seu olhar irá objetificar qualquer uma sem distinção. Isso é algo que nós, como criadoras, não seremos capazes de controlar, independente de nossa vontade.

A história de Vasalisa e Baba Yaga - a boneca para intuir

Anos mais tarde, foi lendo a história de "Vasalisa, a sabida" ou "A Boneca" que tive epifanias sobre o uso simbólico de bonecas na formação psicológica das mulheres. Trata-se de um conto tradicional da Rússia, mas também da Romênia, Iugoslávia, Polônia e países bálticos, bem anterior à invenção das matrioskas. Essa história estava no capítulo três do já mencionado livro "Mulheres que correm com os lobos".

 

Quando a mãe de Vasalisa estava em seu leito de morte, deu à filha uma minúscula boneca que era uma exata miniatura da criança. Tinha a mesma saia, o mesmo avental, a mesma bota e o mesmo penteado. Em suas últimas palavras, a orientou a levar a boneca onde quer que fosse, a perguntar a ela sobre qualquer dúvida que tivesse, a pedir-lhe ajuda e a alimentá-la. Desde então, a menina carregou a boneca no bolso. Depois que a mãe faleceu, o pai se casou novamente e Vasalisa se tornou uma espécie de Cinderela, maltratada pela madrasta e suas irmãs. Certo dia a madrasta e suas filhas tiveram a ideia de apagar o fogo da própria casa e pedir à Vasalisa que fosse à floresta pedir fogo à famosa Bruxa Baba Yaga, na esperança que fosse morta. A garota foi, como solicitado.

No caminho, conforme ficava em dúvida, foi pedindo orientações à sua pequena miniatura. Com isso, conseguiu escapar dos perigos da floresta e acabou encontrando, afinal, a casa de Baba Yaga. Lá ela foi recebida pela velha, que a testou, do momento que a conheceu ao momento que se despediu, realizando uma série de provas. A menina passou em todas, graças à ajuda da bonequinha. Além de tudo, aprendeu uma série de lições de vida com a anciã, que lhe deu um objeto mágico para conseguir voltar para casa em segurança. Quando chegou em casa, a madrasta e as filhas estavam quase morrendo de frio. Contaram que tentaram a todo custo acender o fogo sozinhas, mas não conseguiram. Com o passar do tempo o presente de Baba Yaga as queimou por dentro até que se reduziram a cinzas. E Vasalisa pôde então viver livre de suas algozes.

 

A boneca, ao invés de servir como modelo do que uma menina precisava se tornar para ser aceita e amada (sem vida, sem vontades, decorativa e manipulável), sendo a imagem semelhança de Vasalisa, serviu como instrumento para que acessasse a sua própria intuição e aprendesse a cuidar de si mesma. Sim, Vasalisa se projetava no objeto, mas o objetivo final era que, com isso, se auto descobrisse a ponto de tomar propriedade sobre si mesma, e não que se tornasse como o próprio objeto inanimado. O processo de socialização em sociedades patriarcais parece fazer o reverso. A boneca é usada como um fim em si mesma, em um processo de metamorfose para te tornar uma, e não como um meio de autoconhecimento, até que você não precise mais dela.

Depois de ler esse conto fiquei imaginando se talvez as famosas figuras femininas do neolítico não cumprissem um objetivo parecido, de auxiliar no acesso à intuição, posto que eram pequenas estatuetas que cabiam em mãos. Concluí que o objeto boneca, por si só, não é ruim. O que o torna ruim é o que se propõe como uso dele. Assim nasceu "La que Cría", uma escultura de uma mulher grávida, com um buraco oval na barriga, que gesta ideias, sobre a potência criativa inerente das mulheres, que não se limita à capacidade de gestar crianças, por mais grandioso que isso seja por si só. 

Considerando outros trabalhos que poderia realizar utilizando a simbologia da boneca, me peguei pensando que jamais conseguiria realizar um trabalho de arte que desfigurasse uma. Seria como ferir a mim mesma. Não só pelos laços afetivos que criei com esses objetos na infância, mas por uma questão de identificação. Eu sinto vontade de cuidar delas. Por mais que cumpram uma função no patriarcado, não são as culpadas, são meramente usadas por ele. Por isso, não faria sentido extravasar minha raiva nelas. Essa atitude seria semelhante aos atos de auto ódio que desferimos contra nós mesmas. Atualmente, para mim, as bonecas meramente decorativas possuem uma tristeza quase que inerente, não me despertam ódio mas pena e compaixão.

Tive a ideia, no entanto, de realizar uma série de colagens de imagens de bonecas, domésticas e sexuais, de crianças e de adultos, que sintetizassem esse lugar que os patriarcados nos colocam. Colagens que mostrassem a antítese das expectativas que jogam sobre nós, o contraste entre as idealizações que meninas nutrem e o que se espera de nós enquanto adultas, entre o dispositivo materno e o dispositivo sexual. É perverso. Não somos ensinadas a cuidar de nós mesmas, mas a cuidar e a nos preocupar com o outro. Não somos ensinadas a sermos protagonistas da própria história, mas passivas coadjuvantes que, com sorte, serão salvas. Os patriarcados nos querem eternamente dependentes.

No processo de experimentação das colagens, descobri a silhueta da matrioska como máscara para recortes, perfeita para exemplificar as camadas, tanto geracionais, quanto da socialização individual, como também para exemplificar a modelagem que sofremos de material bruto, natural, a material decorativo, constrito, imóvel. Por sua vez, a escolha da temática do matrimônio, em Rito Fúnebre, surgiu principalmente a partir da leitura de outro livro, chamado "Amar para Sobreviver - Mulheres e a Síndrome de Estocolmo Social", da psicóloga Dee. L. Graham. Não obstante, pretendo continuar com a pesquisa em torno das bonecas, abordando outros temas, pois ainda tenho muitas ideias que não foram postas em prática.

'Amar para Sobreviver' e a violência masculina contra as mulhereres

Na obra, a autora compara a psicologia das mulheres com a psicologia de pessoas em cativeiro. Na dependência do captor, sentindo que não há possibilidade de escapar, o cativo faz de tudo para sobreviver, até mesmo se afeiçoar ao algoz, tanto como estratégia para conquistá-lo, quanto para manter a esperança de um futuro diferente, se protegendo com isso dos efeitos psicológicos devastadores das sensações de medo e perigo. Assim, ela explica as condições macro sociais que condicionam as mulheres a buscarem relacionamentos heterossexuais, mesmo que ofereçam claros perigos a elas. Como trata-se de uma teoria muito complexa, não vou tentar explaná-la nesse texto, prefiro recomendar a leitura do livro em primeira mão. Todavia, há um fenômeno muito interessante que ela descreve na publicação que vale a pena destacar: a clivagem.

A clivagem acontece quando pessoas não conseguem enxergar simultaneamente o lado bom e o lado ruim de uma ou mais pessoas ou situações. Quando o oprimido não vê chances de escapar da sua condição, para se proteger do sentimento de terror e não destruir a própria esperança, o lado ruim do opressor acaba sendo negado enquanto há uma percepção exagerada das boas características ou atitudes.

 

"Uma das consequências da clivagem é que as mulheres separam os homens em duas classes, os predadores (estupradores, agressores, perpetradores de incesto) e os protetores. Essa compartimentalização faz com que elas não consigam reconhecer que, ao mesmo tempo, todos os homens são gentis com as mulheres (de certa forma) e também promovem a violência contra a mulher e se beneficiam dela. Todas as mulheres parecem empregar a clivagem, de um jeito ou de outro. Referindo-se às antifeministas, Rowland (1984) comenta: "Há (...) dois tipos de homens: pais e maridos decentes e amorosos, e homens irresponsáveis, solteiros e sem filhos" (p. 220). O marido que estupra e espanca a esposa e o pai que abusa sexualmente dos filhos não são reconhecidos; nem o solteiro bondoso e responsável. Qualquer pai ou marido é, por definição, visto como bom; e qualquer solteiro, como indigno de confiança. Rowland (1986) constatou que as feministas "abominam (...) a violência e a crueldade dos homens", enquanto "as antifeministas parecem desconhecer (essa violência e essa crueldade) ou acreditar que elas só acontecem em casos raros" (p. 687).

 

[...] As mulheres costumam negar que os homens do seu círculo íntimo - o grupo mais propenso a agredir mulheres (SMITH, 1988) - são perigosos. Na verdade, nós, mulheres, costumamos considerar os homens próximos "amorosos" e "maravilhosos", enquanto redirecionamos o medo para os homens desconhecidos e a raiva para alvos mais seguros: nós mesmas, outras mulheres e crianças.

 

[...] O fato de o acaso determinar qual mulher individual será atacada num dado momento ("ela só estava no lugar errado, na hora errada, como os estupradores não nos deixam esquecer) nos ameaça e nos faz sentir que temos pouco ou nenhum controle sobre se nos tornaremos vítimas e quando. A teoria da atribuição defensiva (SHAVER,1970; WALSTER, 1960) estabelece que essa ameaça de vitimação costuma ser combatida num nível inconsciente de maneira que as mulheres (vitimas em potencial) nunca precisem reconhecer conscientemente o quanto estão vulneráveis."

 

Essa análise ajudaria a explicar, por exemplo, porque ocorrem os fenômenos da culpabilização da vítima, em relação a terceiros, e da auto culpabilização, em relação a si própria. A culpabilização da vítima serve para a acusadora dizer a si mesma que é diferente da vítima e que, portanto, aquilo nunca pode lhe ocorrer. Enquanto que a auto culpabilização pode ser uma maneira de evitar o sentimento de medo, aversão e humilhação em se entender como vítima, de sentir que tem algum poder sobre a situação, e de preservar a autoestima. Ou seja, em ambos os casos esses fenômenos estão ligados a tentativas de autoproteção. 

 

Pode ser desvastador demais para algumas mulheres perceber o quanto estão vulneráveis à violência masculina e aos efeitos nefastos do machismo no geral. É preferível manter-se inconsciente sobre o assunto. Por que mulheres compactuam com o patriarcado? É uma questão de sobrevivência, necessidade. Além do mais, se as bases da sua identidade foram construídas sobre gelo, pode ser que você se mantenha no frio indeterminadamente até que tenha coragem de se reconstruir. Mas o bom da verdadeira autoanálise feminista é que por incrível que pareça ela te tira de um lugar de culpa e te mostra que efetivamente você só compactuou com a própria opressão porque, como sujeito, é fruto de um processo histórico-social-cultural muito antigo, muito maior do que si mesma. O machismo, assim como racismo, é estrutural.

Outro motivo da escolha da temática do matrimônio é que, além do livro, eu também estive acompanhando as estatísticas sobre feminicídio no Brasil, que só cresceram nos últimos anos. Em nosso país, mais que o dobro dos homicídios de mulheres acontecem dentro de suas casas, em comparação aos dos homens. E em 2022, 82% dos feminicídios registrados no Brasil foram cometidos por companheiros ou ex-companheiros das mulheres assassinadas. Na minha percepção, não há tanta comoção e indignação em torno dessas mortes quanto deveria ter. São tratadas como mortes quase que naturais, como infortúnios ou acidentes, são pouco comentadas. O que não é de se surpreender, já que uma pesquisa da ONU de 2023, que envolveu mais de 80 países, revelou que um 1/4 dos entrevistados acreditam que a violência de um homem contra a esposa é de alguma forma justificável.

Mas a gravidade desses crimes vai além do horror da misoginia ou de tirar a vida de alguém. Pesquisas revelam que a maioria das vítimas de feminicídio são mães. Isso significa que, depois das assassinadas, as crianças costumam ser as maiores vítimas desse tipo de crime, posto que, quase sem exceção, estavam sob os cuidados exclusivos da mãe antes do crime acontecer. Segundo reportagem do Portal Uol, em 80% dos lares brasileiros onde um homem tentou matar uma mulher com uma faca ou arma de fogo, essa vítima era mãe e provavelmente os filhos assistiram às agressões. De todas as mulheres que sofreram qualquer tipo de violência doméstica, 60% tinham filhos. E mães representam 74% das vítimas de estrangulamento e tentativa de espancamento, 65% das que são agredidas com tapa, soco, empurrão ou chute, e 65% das que sofrem ameaça de agressão física.

 

Os próprios relatos gravados para a parte sonora de"Rito Fúnebre" escancaram essa realidade. Em muitos, selecionados de forma aleatória, o crime é cometido na frente dos próprios filhos do casal. O que será do futuro das crianças que tiveram as mães assassinadas, depois de um evento tão traumático como este? Será que os brasileiros se preocupam tanto quanto dizem com as próximas gerações? Porque, se lutam tanto contra a legalização do aborto (58% disseram à ONU que aborto nunca é justificável), deveriam se preocupar igualmente com as crianças que já nasceram. Isso significa cobrar políticas assistenciais para mães, até porque estas chefiam 48% dos lares no Brasil, segundo IBGE, sendo 17,8% chefiados por mães solo, segundo pesquisa da FGV.

Outro padrão que pude acompanhar, por meio da leitura e seleção dos relatos presentes em meu trabalho, é que a maioria dos feminicídios acontecem quando a mulher decide se separar, o que corrobora para a já citada tese de Dee L. Graham, comprovando que ficar em um relacionamento é questão de vida ou morte, não apenas subjetivamente, ou de forma indireta, mas em muitos casos literalmente. Ela explica que, geralmente, para escolher o término, o risco de morrer estando dentro dessa relação tem que ser maior do que o risco que a mulher enfrentará saindo dela.

Quem ama liberta

A escolha do tema também se deu porque estive acompanhando pelas redes sociais o memorial de feminicídios Quem Ama Liberta, criado e alimentado por Regina Jardim, cujos casos divulgados sempre me estarreceram. Cada nova postagem é o registro de um novo caso de feminicídio noticiado por portais de notícias. Todos os dias, Regina, que perdeu uma filha por feminicídio, faz o trabalho doloroso de pesquisar por mais casos para atualizar o memorial. Para quem não conhece, vale muito a pena conhecer. Foi a partir desse memorial, em parceria com a Regina, que eu selecionei os 69 casos de feminicídios narrados na parte sonora de "Rito Fúnebre". A princípio eu não sabia como inserir os relatos no meu trabalho, se por meio de fotos ou registros escritos, foi quando a minha orientadora me sugeriu usar o recurso do áudio que encontrei a solução. As vozes são de amigas e conhecidas que toparam emprestar sua fala para mulheres que já não têm como contar as próprias histórias.

Meu intuito foi criar um contraste. Decidi, através das imagens, mostrar a narrativa sobre matrimônio que é vendida todos os dias para meninas e mulheres, e, através do som, mostrar narrativas reais de mulheres que morreram por acreditarem nesse ideal. Afinal ninguém se casa, ou se envolve com alguém pensando que seu noivo ou namorado um dia será seu próprio assassino. Todas que foram mortas nessas condições, sem exceção, acreditaram no sonho. E quando era tarde demais… 

É claro que nem todo casamento termina em feminicídio. Meu trabalho não tem como propósito criar um falso alarme. O assassinato é a máxima violência que pode ser cometida contra uma mulher dentro de uma relação. Mas existem muitas outras, das mais sutis às mais escancaradas, que acontecem com muito mais frequência antes de chegar nesse ponto. Poderia ser eu? Poderia ser alguém que eu conheço? Alguém pode se perguntar ao se deparar com o trabalho.

Teço a crítica de que é difícil encontrar qualquer relação heterossexual livre de violência masculina, seja ela sexual, física, psicológica, patrimonial ou moral. Embora existam exceções à regra, é cruel o fato de que a cultura continue aconselhando mulheres a apostarem todas as suas fichas, a dedicarem toda sua energia a isso. Conseguir um relacionamento com um homem que seja livre de qualquer tipo de violência é como ganhar na loteria. Nunca se sabe o que está por trás de fotos românticas de redes sociais. Enquanto isso as mulheres seguem jogando roleta russa. Mesmo as desigualdades estruturais entre homens e mulheres deveriam contribuir para que mulheres tivessem mais receio de adentrar nessa jornada.

Por mais que um marido seja 'incrível', 'trabalhador', 'bom pai', em comparação com a média masculina, existe toda uma carga de trabalho que acaba recaindo à mulher, principalmente quando se torna mãe. É o tão falado trabalho não remunerado do cuidado, da limpeza, da alimentação, da organização e do planejamento familiar. A própria diferença salarial no mercado de trabalho gera uma diferença de status e influencia que, na hora de escolher, a mulher seja a pessoa da relação a abdicar da sua carreira por um tempo em prol da criação dos filhos. Sendo que geralmente, nunca tem seus esforços reconhecidos tanto quanto os homens. E mesmo quando tudo vai 'bem', na hora da doença é comprovado estatisticamente que homens tendem a abandonar mais suas parceiras do que o contrário, cerca de 70% dos homens abandonam as companheiras após diagnóstico de câncer por exemplo.

Eu mesma, como mulher, preciso me proteger dessa armadilha. Não que eu tenha sonhado muito com casamento, mas já pensei que vestido usaria, onde seria minha festa, como seria a decoração e o que eu esperaria de uma relação conjugal. Particularmente o que eu mais sonhei foi em relação a filhos. Mas todo esse imaginário também me afeta, toca em pontos sensíveis para mim, na minha carência, nas minhas fragilidades, no desejo de ser amada… Até mesmo no desejo de ser aprovada por parte da minha família paterna, que insistentemente quer saber sobre namorados, querem saber se está namorando, quando vai noivar, e quando está noiva quando vai casar, e assim por diante. Fui criada, afinal, para ser a esposa de alguém.

Mas mais doloroso que abandonar um sonho, um ideal, ainda que não fosse totalmente meu, é viver para agradar outras pessoas, é embarcar nessa jornada e passar por todas as violências que já estudei, é viver uma expectativa que nunca se concretiza. Melhor frustar o sonho antes do que passar por tudo isso. É possível criar expectativas que condizem mais com a realidade, com o que é possível e provável, na qual idealizo viver por mim, sem a dependência do amor masculino. Falo também sobre mim, porque eu também sou uma mulher que cresceu em uma sociedade patriarcal e que vivencia tudo isso na pele. Como bem pontua o slogan feminista, "o pessoal é político".

Genealogia do Trabalho

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