A árvore e a boneca
Na antiga Mesopotâmia, há mais de 6 mil anos atrás, a árvore e a serpente foram símbolos que representavam a deusa. Mais tarde, esses signos aparecem no mito da criação judaico-cristã como a árvore da vida, a árvore do conhecimento e a serpente, co-responsável pela expulsão do primeiro homem e da primeira mulher do paraíso. Curiosamente, a árvore do conhecimento era proibida e a serpente foi transformada em uma vilã, não poderia mais a mulher se associar a ela. Com o tempo, com a expansão dos sistemas patriarcais e em nome do lucro, foi se intensificando a reificação da natureza que, assim como a mulher, foi tratada como produto a ser desfrutado e apropriado por homens.
Na Rússia, no fim do século XIX, nasce a primeira Matrioska. Retirada de seu ambiente natural, a madeira da árvore tília foi entalhada e modelada nas mãos de um habilidoso artesão, para então ser ornamentada com uma pintura que representava uma mulher, com lenço na cabeça e vestes decoradas de motivos florais. A partir da primeira boneca, foram confeccionadas outras bonecas, que funcionaram como caixas não convencionais ou camadas, que guardavam a original. O conjunto simbolizava as várias gerações, a linhagem familiar, a maternidade e o cuidado. Era um brinquedo, mas também um objeto decorativo, que veio a se tornar parte importante da tradição russa.
De certa forma, a matrioska sintetiza em uma imagem o simbolismo da domesticação da mulher, descrita de forma poética por Clarissa Pinkola Estés, em seu livro "Mulheres que correm com os Lobos". Esse processo, que alguns chamariam de socialização feminina para a feminilidade, se trata da imposição, desde o nascimento, de gostos, vontades e sonhos, de padrões de comportamento, personalidade, temperamento e estética, que se espera que mulheres atendam em sociedades patriarcais. Em oposição, segundo a autora, a mulher selvagem seria a mulher livre, mais próxima da natureza, mais conectada com a própria intuição, com os próprios ciclos, insubmissa, a que se movimenta, e que conhece e se utiliza de todo seu poder criativo - que vai muito além da habilidade de gestar e cuidar de outros seres humanos, ou de realizar funções domésticas.
Na dinâmica da supremacia masculina, a feminilidade seria todo o conjunto de signos que expressam submissão, enquanto a masculinidade seria todo o conjunto de signos que expressam a dominação. Por outro lado, o feminino seria o conjunto de experiências intrínsecas a quem nasce do sexo feminino, relacionadas ao funcionamento do corpo, às necessidades do corpo e ao trato da saúde no geral, enquanto o masculino seria o conjunto de experiências intrínsecas a quem nasce do sexo masculino, também ligadas ao corpo. Nos sistemas patriarcais, feminilidade e feminino são tratados como sinônimos, apesar de não serem. E o corpo masculino é tido como o padrão, o neutro, tudo é construído a seu favor, a ciência, a arquitetura, o design, enquanto o corpo feminino é tido como o outro, um masculino inferior, e suas necessidades são ignoradas a não ser em benefício de sua exploração.
A boneca russa, que um dia já foi uma matéria bruta, foi remodelada de acordo com os gostos do seu inventor. Pela sua forma e aparência, nos remete à importância da beleza na feminilidade, mas também à constrição de movimentos, à imobilidade. Como bonecas, meninas desde pequenas são coibidas a se manterem belas, dedicando horas à aparência. É exigido que usem roupas bonitas, como os vestidos, mesmo que isso afete sua mobilidade, mas também são compelidas a fecharem as pernas e a não se sujarem. Muita movimentação pode fazer com que os penteados se desmanchem, os adereços caiam, ou que alguma parte do corpo fique acidentalmente exposta.
Em contrapartida, a quantidade de camadas internas da matrioska nos remete à maternidade compulsória e à ancestralidade, fazendo refletir sobre quantas mulheres ao longo da história passaram pelo impiedoso processo de feminilização até o momento presente, quantas foram forçadas ou coagidas a serem mães, e o quanto as violências contra as mulheres se repetiram ao longo das gerações. Existem traumas que são ancestrais e por isso são tão profundos e devastadores, difíceis de superar. No caso, o trauma gerado pela violência masculina é o que faz a roda da dominação masculina girar.
Não obstante, as camadas das matrioskas também fazem refletir sobre a quantidade de camadas que estruturam o patriarcado ocidental, que atualmente é um sistema globalizado, completamente complexificado, cheio de instituições, regras, leis e aspectos culturais. Ou seja, não há uma solução simples ou única para esse problema. Ou mesmo, as camadas também podem nos fazer refletir sobre o quanto tudo isso é complexo dentro de nós mesmas, na estruturação individual e psicológica de cada mulher, posto que cada experiência é única, apesar de terem pontos em comum umas com as outras. Se não fizermos o trabalho de abrir e revelar cada camada, jamais saberemos o que reside internamente. É preciso ser proativa e ter iniciativa para descobrir. Mas em primeiro lugar, é preciso ter interesse.
A cada movimento que se faz para abrir uma das bonecas, reside a pergunta de quantas mais ainda ainda terão de ser abertas até chegar ao objeto (ou objetivo) final. À princípio pode parecer infinito, mas esse processo tem fim. Principalmente quando se alcança o lugar de consciência de que o mais importante esse tempo todo nunca foram as camadas propriamente, mas a matéria em si. Nós mulheres, não somos inorgânicas, mas orgânicas e estamos vivas. Bom… Pelo menos muitas de nós ainda estão.
Vale lembrar que as bonecas, em geral, são objetos feitos para crianças, portanto se tratam de uma figura humana à serviço de um tipo de educação, que pode ser libertadora ou não. No conto de Vasalisa, personagem de uma tradicional história da Europa Oriental, anterior à invenção das matrioskas, a boneca que ganha da sua mãe, feita à sua imagem semelhança, é usada para despertar sua intuição, o autoconhecimento, a autoconfiança e o autocuidado. Mas esse não é o uso comum. Infelizmente, na cultura patriarcal as bonecas ou são usadas para ensinar as meninas a se tornarem como uma, manipuláveis, ornamentais, estáticas, sem vontades ou desejos próprios (boas filhas e boas esposas), ou para ensiná-las o papel reprodutivo que irão desempenhar no futuro (boas mães). Ou seja, são usadas para adestrar as meninas para servir e cuidar do outro, apenas o outro.
Não que a maternidade não seja uma experiência belíssima, de grande valor e importância, essencial e estrutural para qualquer sociedade. Porém ela se torna compulsória onde há a dominação masculina, quando deveria ser apresentada como uma possibilidade dentre tantas outras na vida de uma mulher, possibilidade esta que ao ser escolhida deve ser bem planejada e amparada. Por sua vez, o cuidado para com o outro também é um ensinamento fundamental que sustenta qualquer comunidade, todavia não é estimulado na socialização masculina na mesma intensidade, e as mulheres acabam sustentando esse peso sozinhas. Meninos aprendem a se priorizar, ao passo que meninas aprendem a cuidar de si mesmas em última instância, se é que aprendem. Na feminilidade o dispositivo materno é sobre-explorado, o que acaba tornando-as eternamente dependentes daqueles os quais elas projetam sua carência.
As noivas como Cinderelas
Como descreve Gerda Lerner em seu livro "A Criação do Patriarcado", é em prol do controle reprodutivo que as fêmeas humanas são incentivadas a se relacionarem com homens. As trocas ou raptos de mulheres nas sociedades caçadoras-coletoras, teorizadas por Lévi Strauss, com o tempo foram institucionalizadas diplomaticamente pelo casamento. Assim, seria possível garantir a reprodução de novos membros, de novos trabalhadores e trabalhadoras que garantiriam a continuidade e o sustento da comunidade; e que mais tarde possibilitariam uma maior acumulação de recursos pela parcela masculina do grupo, que já explorava o trabalho feminino. Isso porque, com o fim do nomadismo, a carga de trabalho dos homens diminuiu ao passo que a carga de trabalho feminino se acumulou. Como diria Flora Tristan, precursora de Marx, "A mulher é a proletária do proletariado" e é através do matrimônio que os homens historicamente conseguem suas servas.
Veja bem, a manutenção da vida é um trabalho essencial. Se não há alguém gestando, ninguém nasce. Se não há alguém cozinhando, ninguém come. Se não há limpeza, o ser humano adoece. Se não há alguém cuidando, a criança fica em perigo, o doente não se recupera e o velho padece. As mulheres tradicionalmente fazem o trabalho que é a base para a sobrevivência de qualquer sociedade. Porém esse trabalho é pouco valorizado, sub-remunerado (quando remunerado), chato, repetitivo e sem fim. Idealmente deveria ser compartilhado entre todos os humanos viventes de modo que sua carga fosse aliviada. No entanto, para a maioria dos homens o casamento é uma maneira de transferir essa carga, que antes estava nas costas de suas mães, para as costas de suas esposas, e com isso se verem indefinidamente livres dessa responsabilidade. Claro, é muito mais barato ter uma esposa que realize essas funções, do que contratar profissionais para executá-las.
Mas, é plausível perguntar: se até hoje é por meio do casamento que homens conseguem ter tempo livre para uma maior acumulação de recursos, o que ganham as mulheres ao se relacionarem com homens? A psicóloga Dee L. Graham certamente responderia que, atualmente, ao não recusar a heterossexualidade e o matrimônio, mulheres têm muito mais chances de sobrevivência social. A alienação ideológica é tão grande, que a recusa leva a estigmas como os de "baranga", "mal-amada", "mal-comida" e "sapatona", resultando em exclusão. Só é tida como uma mulher de valor aquela que foi escolhida por um homem, pois se nenhum homem a quis, só pode significar que é uma mulher 'ruim', 'indgina', e no mínimo 'detestável'. Sobrevivência social hoje pode parecer algo supérfluo, mas em muitos momentos da história significou questão de vida ou morte, e no fim das contas, ainda somos uma espécie co-dependente uns dos outros.
Historicamente o casamento foi uma das únicas vias possíveis para as mulheres ascenderem de classe, posto que mulheres apenas acessavam riqueza e poder através da concessão de homens, fossem parentes ou maridos. Mas também, ao largo da história, é possível notar que muitas vezes as solteiras foram perseguidas e ostracizadas, tendo em vários momentos sido expulsas do mercado de trabalho e impedidas de exercerem outras atividades pagas para além da prostituição. Mesmo na prostituição, a vida nunca foi fácil. Por diversos períodos, mulheres prostituídas foram criminalizadas, como demonstra, por exemplo, a autora Silvia Federici em seu livro "Calibã e a Bruxa".
Assim, a infância também é o momento no qual se inicia a romantização do matrimônio, a doutrinação para a heterossexualidade e para a maternidade. A boneca adulta, como a Barbie, é onde meninas projetam suas expectativas de futuro, influenciadas pelas comédias românticas e histórias de princesas. E o que não é uma noiva senão uma espécie de 'Cinderela' que finalmente conquista seu dia de brilho e luxo? A cultura promete que se forem boas o suficiente, um dia finalmente serão amadas por pelo menos algum daqueles que as maltratam desde pequenas. Como consequência, sonham com isso e contam com esse momento em que finalmente irão encontrar um protetor. É notável, inclusive demonstrado por pesquisas, o quanto meninos tratam suas colegas do sexo feminino com desdém ou aberto desprezo. Em paralelo, meninas são ensinadas que esse desprezo é um sinal de amor, que com sorte florescerá de uma bela maneira no futuro.
Sentindo-se incapazes de escapar do sistema de supremacia masculino, um jogo com regras criadas pelos próprios homens, no qual qualquer mulher que desafia a norma corre o risco de sofrer violência e no qual todas se sentem ameaçadas constantemente de sofrer violência (principalmente por meio de assédios), as mulheres escolhem que é melhor se aliar a aqueles que as atemorizam, tentando ganhar o inimigo por dentro, do que se opor abertamente a eles. Essa pelo menos é a teoria da já citada Dee L. Graham, autora do livro "Amar para Sobreviver - Mulheres e a Síndrome de Estocolmo Social", que associa a psicologia das mulheres à psicologia do oprimido ou à psicologia de uma pessoa em situação de cativeiro.
Para a autora, além de tentar amolecer o coração do abusador, a associação da vítima com ele também acontece como fruto de um fenômeno psíquico de dissociação. É melhor se alienar dos perigos eminentes do que estar consciente, pois isso seria demasiadamente aterrador. Então, a idealização e a supervalorização de qualquer sinal de bondade é uma forma de manter esperança de que com o comportamento adequado, sendo capaz de ler seus sinais, compreendê-lo e atender a suas expectativas, basicamente sendo uma 'boa moça', ou uma 'parceira ideal', a violência irá cessar.
Depositar a responsabilidade em si mesma é uma forma de se iludir de que há qualquer controle sobre a situação. Mas a realidade que encontram dentro dos relacionamentos não poderia ser mais dura. A verdade é que não é possível ter qualquer controle sobre as atitudes e comportamentos do outro, que invariavelmente irá fazer o que desejar, o que for mais conveniente, o que for mais confortável para si. A mudança é sempre uma escolha individual, que geralmente só acontece por pressão coletiva. Se um homem pode violentar sua esposa sem que isso resulte em represália, por que ele deixaria de fazer?
A quebra de expectativa
No trabalho, o recurso da repetição da silhueta da boneca e do tema é usado para evidenciar como funciona o uso de narrativas visuais em prol da ideologia patriarcal. Tirando as imagens de um contexto ordinário e colocando-as em conjunto, fica muito mais óbvio o quanto são recorrentes. Combinando a visualidade com os relatos de feminicídio, a obra revela como é frequente a idealização da heterossexualidade, ao passo que não nos damos conta da frequência exorbitante de violências a que mulheres estão suscetíveis ao se relacionarem com homens, sobretudo ao risco de se tornarem vítimas de feminicídio. Nesse sentido, a obra é um index tanto da romantização dos relacionamentos, quanto da mais devasta consequência dessa romantização.
Individualmente, cada fotomontagem presente no trabalho irá transmitir uma emoção. Na maioria a mulher se apresenta como uma espécie de vênus, produzida para que aquele momento represente o ápice de sua beleza. Algumas se assemelham a uma Barbie em uma embalagem, outras a princesas, outras buscam uma beleza mais natural, porém em todas está presente o dispositivo narcísico. Existe um prazer estimulado pelo patriarcado em ser observada, admirada e desejada. Perseguir a beleza é a forma comum que a maioria das mulheres encontram para serem valorizadas e vistas. A beleza é um capital, uma vez que é um fator importante no processo de serem escolhidas por um homem. E, no fim das contas, em sociedades patriarcais são eles que têm o poder de validar uma mulher ou não.
Algumas montagens irão lembrar um aquário, onde paira uma sereia. Representam um ambiente esteticamente aprazível e organizado, ou naturalmente exuberante, que de alguma forma transmite felicidade, mas que é limitado pelo viés dos papéis sexuais, sintetizados pela silhueta da boneca. A liberdade tem um limite. Em outras, a composição se assemelha a uma mulher em um caixão, ainda mais por conta dos véus, das flores e da repetição do casulo, que postos lado a lado lembram a imagem aérea de um cemitério, como as que vimos televisionadas durante a pandemia da covid-19. 'Rito Fúnebre' trata o casamento como um rito de morte simbólica, mas por vezes real, tendo em conta a quantidade de mulheres que são mortas por parceiros ou ex-parceiros.
Nos contos de fadas, as mulheres boas demais geralmente estão mortas. São sacralizadas na memória as mães que perderam suas vidas. Isso porque no patriarcado, a boa vítima é aquela que morre. Morrer parece ser o único jeito seguro de comprovar que de fato foi vítima, ainda que no caso de Angela Diniz, nem isso tenha sido o suficiente. No podcast "A Praia dos Ossos" são reproduzidos áudios do primeiro julgamento de seu assassino, no qual a defesa alegou que Angela tinha um impulso suicida e praticamente queria ser morta.
Ver a diversidade entre as imagens, seja étnica, geográfica, temporal ou estética, provoca uma pergunta: O que há em comum entre todas elas? Ou, o que há em comum entre todas nós? As imagens provocam gatilhos, porque tocam nesse lugar afetivo que reside, de alguma maneira, em cada uma de nós. Os sonhos estão expostos em mural, mas a dureza está no fato de que estão despidos da idealização. É um choque de realidade. Ouvindo os relatos, apreciadoras podem se questionar: poderia eu ter sido vítima de feminicídio? Ou, posso eu vir a me tornar uma vítima de feminicídio? Como se precaver das violências é um pensamento recorrente. Entretanto, é um beco sem saída. Nenhuma mulher se envolve com um homem imaginando que um dia ele será o seu algoz. E assim, seguem jogando a roleta russa do amor.
O fenômeno da clivagem, a separação rígida entre protetores e predadores, que impossibilita ver o lado bom e ruim simultaneamente, acontece justamente para favorecer um distanciamento e trazer a falsa sensação de que a violência nunca pode acontecer consigo. Esse trabalho, por sua vez, tem a intenção ativa de romper esse distanciamento e fazer com que as mulheres se tornem conscientes do quanto estão vulneráveis, por mais que isso seja doloroso. Afinal é apenas com o devido reconhecimento que será possível por fim ao grave problema da violência masculina contra mulheres e, para além disso, da supremacia masculina como um todo.
Não seria mais efetivo contrariar a bossa nova e encontrar uma maneira de ser feliz sozinha?
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